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LIVRE DE CRUELDADE

A busca do ativismo pró-vida animal, com ênfase no Cruelty-Free, por visibilidade nas redes sociais

Regina Ajes/Pixabay

Texto: Carolina Mangieri
Infográfico: Roberto Magalhães e Carolina Mangieri

 

Preservar o meio ambiente, respeitar as demais espécies e consumir de forma consciente e ética são alguns apontamentos defendidos pelos ativistas veganos e vegetarianos. Assim como as argumentações pelos direitos dos animais, os termos relacionados ao universo Eco Friendly (amigável ao meio ambiente) entraram em voga. Estas tendências revolucionam as indústrias cosmetológica, alimentícia, da moda e afins. 

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Um exemplo disso é o avanço do conceito de Cruelty-Free (Livre de Crueldade), que amplia as discussões em torno dos experimentos in vivo, isto é, com cobaias. Atualmente, a expressão é utilizada com frequência para diferenciar os produtos livres dos testes em animais, sobretudo os cosméticos, dos que ainda não aboliram esta modalidade de ensaio.

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A causa até virou canção, eternizada na voz do ex-Beatle e ovolactovegetariano, Paul McCartney. Looking for changes (em tradução livre – Procurando por mudanças), lançada em 1993, discorre sobre o sofrimento causado nos animais dentro dos laboratórios e destaca a necessidade de libertar as demais espécies das experimentações. Em 2019, McCartney concedeu os direitos da música à ONG PETA (People for the Ethical Treatment of Animals – em português: Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais), para a elaboração de um videoclipe animado

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O movimento fura a bolha do ativismo pró-vida animal e conquista adeptos que, inclusive, consomem carne.  Este é o caso da jornalista e analista de mídias sociais, Mariana Lienemann Ramires. Após conscientizar-se sobre os métodos utilizados em laboratórios, a jornalista decidiu deixar de consumir produtos testados em animais.

Além disso, acredita ser uma crueldade desnecessária, uma vez que a ciência evoluiu ao ponto de produzir pele artificial e analisar dermatologicamente alguns efeitos adversos de maneira menos invasivas. “Hoje em dia, tenho o cuidado de buscar marcas que são cruelty-free, ou até mesmo, veganas. Isso é um bônus para mim na hora de escolher tanto cosméticos, quanto outros produtos de consumo. Particularmente, a maior dificuldade é no quesito medicinal. Infelizmente ainda não temos como escapar da testagem animal nesse ponto.”

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Roberto Magalhães e Carolina Mangieri

Apesar de consumir carne, Mariana teve contato com pautas vegetarianas durante a infância. “Minha mãe não consome determinados tipos de carne por conta da crueldade no abate animal. Então, desde cedo, ela conscientizou tanto eu, quanto meu irmão, a respeito disso. Sempre que consumimos algo de origem animal, pesquisamos sobre a marca para, pelo menos, saber se o tratamento foi humanizado”, afirma. 

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Referente ao mercado industrial, a jornalista enxerga um grande avanço em relação aos produtos cruelty-free e destaca a facilidade em encontrar estes itens. Segundo ela, esta mudança de cenário está ligada à divulgação mais intensa da causa animal. Desta forma, surge uma demanda maior para as marcas se reinventarem e o acesso é facilitado. 

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Mariana busca no ambiente digital informações para garantir que as compras sejam realmente livres de crueldade. “Tento sempre olhar sites, redes sociais, reclame aqui e grupos de Facebook voltados ao Veganismo e Cruelty-Free. Tem até alguns apps pra celular que checam o rótulo, principalmente para produtos de cabelo e para quem faz No e Low-poo”, conclui.

REDES SOCIAIS E A LIBERTAÇÃO ANIMAL

Se em um passado distante os antigos gregos utilizavam as Ágoras como sede para debates políticos, sociais e culturais, atualmente, com o advento tecnológico da internet, as mídias sociais desempenham papel similar. 

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Inclusive, nos últimos anos, elas ganharam força. De acordo com o relatório anual “Digital in”, publicado em janeiro de 2020 pelas agências de Marketing Digital, We Are Social e Hootsuite, as redes sociais, ao redor do mundo, possuem 3,80 bilhões de contas ativas. Segundo a publicação divulgada durante o mesmo período em 2015, este tópico representava 1,68 bilhões. Ou seja, durante cinco anos, o número de logins ativos superaram o dobro. 

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No Brasil, o cenário não é diferente. Conforme as estatísticas apresentadas pelas agências, neste ano, 140 milhões de contas estão ativas. O relatório também aponta quais são as redes sociais mais acessadas pelos brasileiros, na faixa-etária dos 16 aos 64 anos. O YouTube lidera com 96% de acessos, seguido por Facebook (90%), WhatsApp (88%), Instagram (79%) etc.

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Com a popularização destas mídias, houve a democratização de determinadas informações, que antes eram decididas exclusivamente por mídias tradicionais. Neste contexto, nascem perfis voltados ao debate de causas políticas, sociais, culturais e afins. 

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Dmitry Bayer/Unspalsh 

Foi assim que o veganismo e vegetarianismo cresceram exponencialmente nos últimos anos.  Uma pesquisa realizada em abril de 2018 pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE), contratada pela Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), indica que 14% da população brasileira denomina-se vegetariana. Isto representa quase 30 milhões de brasileiros. 

Movimento vegetariano, próximo ao vegano, cresceu consideravelmente nos últimos anos.

Poderiam as informações difundidas nas redes sociais realmente ter influenciado na crescente adesão às dietas sem carne? A empresária e criadora da página Vegana Explana, Thayssa Conti, afirma que os conteúdos veiculados no ambiente digital têm o poder de influenciar as pessoas. “As redes sociais servem como aliadas na hora de transmitir conteúdos rápidos e de fácil entendimento. Antes as pessoas precisavam buscar elas mesmas sobre um tema e hoje, através de diversas contas, já consomem esse material ‘mastigado’ e de forma rápida, assim acelerando o processo de digerir e refletir.”

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O perfil Vegana Explana, mantido no Instagram, foi criado quando a empresária aderiu ao veganismo e começou a cursar Nutrição. No início, a página replicava publicações de terceiros e, após o crescimento no número de seguidores, sentiu a necessidade de criar o próprio material. Com isso surgiu o “antes e depois” – conteúdos criados para mostrar as substituições realizadas em sua transição para uma vida mais minimalista e de zero lixo, algo que fez a página crescer consideravelmente.

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Após algumas enquetes no perfil, Thayssa chegou à conclusão que o maior público é ovolactovegetariano, seguido por vegetarianos estritos, simpatizantes e, por fim, veganos. Segundo ela, este é um dos motivos pelos quais as publicações abordam um veganismo leve e com maior valorização das pequenas atitudes de cada um. “Isso faz com que muitas pessoas que comem carne, mas têm interesse pelo estilo de vida, não se sintam excluídas como geralmente são em outros perfis. As pessoas se sentem acolhidas e apoiadas em suas transições e escolhas.”

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Atualmente, a Vegana Explana produz conteúdos interativos e propõe aos seguidores adotar movimentos como o “Segunda sem carne”, “Terça sem leite” e afins. A criadora pontua a necessidade de debater a relevância destes posicionamentos, uma vez que eliminar a carne do cardápio, mesmo por um dia, aumenta consideravelmente os números de vidas poupadas, além de emitir menos CO2 e gerar grande economia de água. “Levei mais de 10 anos para me tornar vegana, e hoje muitas pessoas me tomam como referência. Trilhei uma longa jornada e acreditei por muito tempo que se eu cortasse apenas uma coisa, não faria diferença. Isso não é verdade. Acho que essas mudanças não devem ser lugares de permanência, mas sim pontos de partida.”

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O veganismo e o ambientalismo (movimento pela defesa e preservação do meio ambiente) andam lado a lado. Inclusive, este é um dos apontamentos do produtor cultural e administrador do grupo Veganismo Pleno, Rodrigo Marques Foresto. De acordo com ele, não é possível enxergar uma militância desconectada da outra, porque é comum encontrar, dentre os veganos e vegetarianos, consumidores de mercadorias orgânicas ou mesmo que fazem o plantio em suas casas. Desta forma, o número de uso dos agrotóxicos é reduzido e o verde na cidade aumenta.

Outra justificativa de Rodrigo é a preocupação com a saúde dos animais marinhos, gerando, consequentemente, a diminuição no consumo de produtos plásticos. “Sempre nos envolvemos em protestos e denúncias contra agressões ao meio ambiente. Afinal de contas, quando se corta uma árvore, destrói o habitat de um animal. Quando se queima uma floresta, inúmeros animais morrem.”

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Giogio55/Pixabay

Detritos jogados ao mar, prejudicam a qualidade de vida das espécies marinhas.

A indústria e o consumo desenfreado de carne são apontados pelo produtor cultural como um dos maiores responsáveis pelo aquecimento global e por emissão de poluentes, duas ameaças para sustentabilidade do planeta. “Segundo a ONU, só de frango são 66.6 bilhões de animais abatidos por ano. Gente, isso é surreal! Sem falar que, para produzir cada quilo de carne, são utilizados 7kg de grãos e 15 mil litros de água. A conta é fácil: se estes grãos fossem destinados a alimentar humanos, isso acabaria com a fome no mundo.”

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No Brasil, o grupo Veganismo Pleno é um dos maiores no segmento pró-vida animal e que utiliza a nomenclatura ligada à causa vegana. Atualmente, possui mais de 31 mil participantes. O espaço é palco para debates sobre exploração animal, políticas antiespecistas e compartilhamento de receitas, informações e notícias. Também tem finalidade de conscientizar e facilitar as discussões em torno do ativismo pelos direitos dos animais. 

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O grupo consolidou a identidade associada ao Veganismo Libertário, também conhecido como Veganismo Abolicionista. Conforme definição do site Vegpedia.com, os veganos abolicionistas sustentam que o uso de animais não possui fundamento moralmente justificado e deve ser abolido. Além disso, julgam que práticas gradativas não atingirão a libertação animal. 

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Foresto afirma que, embora o ciberativismo seja mais impessoal em relação ao tradicional, possui inúmeras vantagens. “Temos à nossa disposição uma enorme oferta de documentários, gráficos, pesquisas, imagens, receitas e dicas que podemos transmitir às pessoas imediatamente, para corroborar nossos argumentos de que viver sem consumir produtos de origem animal, ou testados em animais, é possível, agradável, saudável, viável financeiramente e ecológico.”

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Engin Akyurt/Pixabay

Durante a quarentena causada pelo novo Coronavírus (Covid-19), o tempo em casa aumentou e, como efeito, houve a crescente nas horas gastas dentro do ambiente digital. A empresa de análise de mídia, Comscore, publicou uma pesquisa no início do isolamento, em março, que apontava as redes sociais como uma de três categorias na faixa expressiva de aumento nos acessos. Neste período, as mídias sociais passaram de 34 bilhões de sessões para 43 bilhões, computando 19% de aumento na média de permanência.

Durante o distanciamento social, as mídias online estabeleceram sua relevância.

Ou seja, com o Covid-19, as redes sociais consolidaram sua relevância. Rodrigo compreende que estas mídias construíram um poder indescritível e cita, sob sua perspectiva, os pontos negativos e benéficos. Um exemplo negativo são as redes de notícias falsas com fins eleitoreiros e mercadológicos. “Mas há também muita gente consciente usando os holofotes virtuais com boas intenções. A começar pelos digitais influencers, chegando até os coletivos, sem desprezar a voz dos ativistas independentes. Existem muitas pessoas bacanas propagando mensagens em prol de um mundo melhor.”

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NordWood Themes/Unsplash

FATO OU FAKE?

Nesta onda de consumo consciente, a demanda por produtos livres de crueldade, com menor impacto ambiental e sem origem animal está em crescente. Com isso, as empresas enxergam um mercado promissor e produzem, cada vez mais, mercadorias orientadas aos públicos vegetarianos e veganos.  Entretanto, nem tudo que reluz é ouro. 

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O Veganismo Abolicionista afirma que, para um item ser considerado vegano, por exemplo, é preciso que a marca não esteja envolvida com nenhum episódio de exploração animal, além de não utilizar quaisquer substâncias provindas de animais. O mesmo se aplica ao Cruelty-Free, conforme pontua o artista plástico, criador e administrador da página Vegetarianos Online, Wil Lemansch. “Não existem produtos livres de crueldade se a empresa continua a ser cruel. É falsa simetria imposta por quem tem poder econômico e pode mudar as regras do jogo como quiser.”

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Com a necessidade de checar a procedência destas produções, surgem perfis online para fornecer tais informações. Este é o caso do Vegetarianos Online. A página disponibiliza comparativos entre marcas Cruelty-Free e as que ainda não aboliram os testes. Para chegar ao veredito, Wil realiza uma entrevista com a empresa e, com base nas respostas, elabora os materiais vinculados à conta.

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Este modelo é popular entre os criadores de conteúdo deste nicho. Como é o caso das blogueiras de beleza, Nicole Gonçalves (Nicole Make) e Ariane Ficher (Ari Vegan Beauty). Nicole é conhecida por ser a primeira blogueira vegana, abordando o tema por volta de 2013, quando o assunto era pouco falado. Além disso, possui opiniões que vão na contramão às ideias do Veganismo Abolicionista, ou seja, mais próximas ao Veganismo Pragmático. 

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Novamente, segundo definição do Vegpedia.com, os veganos pragmáticos defendem a ideia de que todas as transições de consumo são benéficas e podem gerar uma redução significativa da exploração animal. Neste conceito, pouca melhora é melhor que nenhuma.

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Recentemente, a influencer posicionou-se a favor do uso de marcas Cruelty-Free e Veganas pertencentes a empresas-mães que não aboliram a modalidade de ensaio in vivo. De acordo com ela, é importante valorizar a mudança gradual na forma de produzir dentro das indústrias cosmetológica e afins.

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Lemansch adota um pensamento contrário ao citado anteriormente. Para o artista plástico, a consciência seletiva não resolve o problema ambiental. “Não adianta falar em ser cruelty-free ou vegano sem olhar para onde os detritos dos meios de produção estão escoando, mesmo porque isso afetaria, e afeta, espécies humanas e não-humanas. Quando uma empresa tem apelo vegano, mas não tem responsabilidade ambiental, isso é marketing vegano e não veganismo.”

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Afinal de contas, como os selos Cruelty-Free e Vegano são disponibilizados a uma marca? Existem algumas organizações não governamentais (ONGs) que distribuem o certificado após análise dos produtos em questão. Por isso a aparência de cada certificação varia.

A nível internacional, as ONGs PETA, Choose Cruelty Free, Vegan Action e Cruelty Free International são algumas que oferecem esta credencial. No Brasil, a ONG Projeto Esperança Animal (PEA) é uma das distribuidoras do selo livre de crueldade. Para adquirir o certificado e constar na lista de empresas que não testam em animais, basta preencher o formulário disponibilizado no site da ONG, enviar as documentações solicitadas e aguardar o parecer. Não é cobrada nenhuma taxa para a inclusão no catálogo e para o uso do logo.

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Carolina Mangieri

Alguns exemplos de selos cruelty-free e vegano.

Em relação aos selos veganos, no âmbito nacional, uma fornecedora é a SVB. Os critérios de avaliação para adesão ao programa da organização são: não conter ingrediente de origem animal, a empresa ter abolido os experimentos in vivo há, pelo menos, cinco anos e os fornecedores não realizarem testagem de ingredientes em animais. É importante ressaltar que o selo é designado ao produto, não à marca.

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Wil, no perfil Vegetarianos Online, já teceu críticas à certificação da SVB. Pelo seu posicionamento pessoal, o Veganismo não é apenas um modo de se alimentar e, sim, uma conduta ética e moral. Na concepção de Lemansch, ao fornecerem uma certificação deste nível a uma empresa não-vegana, reduzem o movimento a uma dieta. “Veganismo é essencialmente abolicionista e interseccional. Trata de animais não-humanos e humanos. E está completamente ligado aos meios de produção em decorrência de suas consequências ambientais e de exploração com todas as espécies (inclusive a nossa). É importante levar em consideração o Ecossocialismo que está se entrelaçando ao veganismo tradicional, em função do que foi citado. A revolução para um mundo justo, começa no prato e caminha com a empatia”, finaliza.

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Os consumidores veganos e vegetarianos confiam nos produtos cruelty-free e veganos? Este foi o tema do nosso podcast.

Mesa Redonda
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Tumisu/Pixabay

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Loriane Magnenat/Unsplash

RAÍZES SOCIOCULTURAIS DO ESPECISMO

Já ouviu menção ao conceito “especismo”? Caso não, saiba que é conhecido e possui fama duvidosa dentro do ativismo pró-vida animal. 

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O termo foi criado pelo psicólogo britânico, Richard D. Ryder, para classificar a crença filosófica e popular de que os seres humanos, por sua capacidade intelectual, têm direito de explorar e tratar como bem entendem as demais espécies. Isto é, neste pensamento, estamos no topo e todo o restante abaixo, portanto, deve nos servir.

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Esta ideia é disseminada há milênios, inclusive, bem antes de Cristo. Conforme citado anteriormente, as Ágoras gregas eram locais públicos para debates em diversas esferas.  Possivelmente, podem ter sido palco de discussões em torno da convicção especista. Isto se justificaria pelo fato de alguns filósofos gregos da época serem ligados a este ideal. Como é o caso de Aristóteles. Segundo Rafaella Chuahy, no livro “Manifesto pelos direitos dos animais”, o pensador grego mantinha o posicionamento de que os animais eram providos de sensibilidade, porém, o mesmo não se aplicava à racionalidade. Por isso, seriam inferiores aos humanos na hierarquia natural.

De acordo com a autora, o mesmo pensamento era designado a outras pautas. “Aristóteles acreditava que, assim como os animais, as mulheres eram inferiores aos homens e que alguns homens eram naturalmente feitos para serem escravos”. 

Atualmente, o especismo é atrelado aos demais apontamentos de desigualdade humana. Como é o caso do sexismo e racismo. As argumentações teóricas a respeito do tema ganham vitalidade ao longo dos anos. 

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A escritora feminista e ativista pelos direitos dos animais, Carol J. Adams, dedicou mais de uma década de estudos para a publicação do livro “A política sexual da carne: uma teoria crítica feminista-vegetariana”. A tese, lançada pela primeira vez em 1990, traz o debate sobre a possibilidade do consumo de carne e o machismo serem opressões entrelaçadas.

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A primeiro momento, a ideia soa generalista, porém, ao longo da leitura, torna-se embasada e coerente. A autora evidencia o fato de mulheres e animais serem objetificados e sexualizados. Além de divulgar falas de ativistas que julgam impossível desatrelar os movimentos Feminista e Pró-Vida Animal. Afinal, ambos buscam por liberdade, igualdade e também são movimentações políticas.

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Em 2015, por virtude do 25º aniversário, o livro ganhou uma edição ampliada com posfácio. Neste suplemento à obra, são vinculadas diversas propagandas para comprovar a atualidade da teoria proposta por Carol.

Um dos exemplos apresentados no posfácio do livro. [Tradução conforme o suplemento: Fazer um churrasco + 374 pontos de masculinidade; Oferecer linguiças de Tofu nele - 417 pontos de masculinidade]

Da mesma forma, alguns estudiosos afirmam que o especismo e o racismo assemelham-se também. Neste ponto, escritores como o australiano Peter Singer, e o próprio criador do termo, Richard D. Ryder, ganham destaque de fala.

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O filósofo brasileiro especializado em Ética Animal e da Vida, Carlos Naconecy, pontua a relação entre as três formas de opressão, entretanto, destaca que são ao mesmo tempo diferentes. “São semelhantes na medida em que tomam determinada característica como importante para definir padrões e atitudes morais. Por outro lado, machismo e racismo são diferentes do especismo porque, entre outras coisas, é mais fácil ver a semelhança entre pessoas de gênero e etnia diferentes, do que ver a semelhança entre humanos e outros animais. Devido à proximidade ontológica, parece moralmente mais grave dizer ‘detesto negros’ do que dizer ‘detesto gatos’.”

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Uma possível quebra do paradigma especista seria a compreensão da Ética da Vida como um conceito central. Naconecy destaca que esta é uma corrente de pensamento filosófico cujo objeto de atenção moral é focado no indivíduo vivo. Ou seja, a propriedade de viver confere o status moral a uma criatura e define o que deve ser minimamente levado em conta nos termos éticos.  

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Em relação à aplicação deste conceito ao nosso cotidiano, o filósofo afirma que pequenas atitudes são pontos válidos. “Trata-se de integrar esse olhar respeitoso no modo de vida de uma pessoa e isso pode se manifestar de diferentes formas no cotidiano. Quem respeita a vida geralmente não esbanja vida (por exemplo, tentando não matar descuidadamente uma outra criatura ao caminhar pela calçada), não violenta vida sem uma boa razão moral (por exemplo, usando um mosquiteiro em vez de um inseticida em casa), evita entrar em cenários de conflito em que se é obrigado a escolher entre matar ou morrer (por exemplo, não adentrando locais em que é altamente provável a presença de um ataque letal de um animal), etc.”

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UnoL/Shutterstock

VIVISSECÇÃO, QUEM ÉS TU?

Levada ao pé da letra, a expressão significa partir um animal vivo ao meio. Ou seja, seria o ato de dissecar uma criatura. Entretanto, também é utilizada para classificar os experimentos in vivo, seja para fins científicos ou acadêmicos. Em “Manifesto pelo Direito dos Animais”, Rafaella Chuahy denomina a vivissecção como “o pesadelo dos laboratórios”. E pode-se dizer que é. 

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Os testes em animais são realizados em diversas esferas e indústrias, como a dos armamentos, medicinal, cosmetológica etc. As espécies utilizadas variam com base na necessidade, indo de pequeno porte, como porquinhos-da-índia e ratos, aos de porte maior, como cães e macacos. As exemplificações das modalidades in vivo geram alto teor de compaixão.

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A exemplo disso, o método Draize, criado pelos toxicologistas estadunidenses John Draize e Jacob M. Spines, em 1944. Conforme aponta o Instituto Nina Rosa, existem duas modalidades deste teste, uma de irritação cutânea e outra de irritação ocular. Neste primeiro caso, os animais têm seus pelos raspados e a pele sensibilizada com o uso repetido de fita adesiva. Após estas etapas, a substância é aplicada na pele e coberta com o auxílio de ataduras, assim não é retirada com lambidas.  

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No experimento ocular são utilizados como cobaias coelhos, porque são baratos, mansos, de fácil manuseio e possuem olhos grandes, sensíveis e pouco lacrimejam, desta maneira, não expelem as substâncias aplicadas concentradamente em seus olhos. Para garantir que isto não ocorra, são prendidos em aparatos imobilizadores, com as patas distanciadas dos rostos e, por vezes, têm suas pálpebras prendidas com clips de papel.

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Devido ao gênero das experimentações in vivo, surge o debate de cunho ético em torno delas. Carlos Naconecy alega que a crítica ao uso de animais em pesquisas evoca algumas razões não morais, como inaplicabilidade ou aplicabilidade limitada dos dados à realidade humana, fragilidade metodológica, desfechos enganosos ou danosos, trivialidade e redundância dos resultados, e afins. “Se testar uma nova substância química em um olho de uma pessoa amarrada é considerado imoral, o que justifica usar um coelho para isso? Se infectar alguém à força para descobrir a cura da malária é proibido, segundo os princípios da Bioética, por que é permitido fazer isso com um primata? A resposta, como sabemos, é que a vida/bem-estar do coelho e do primata valem bem menos do que nossa vida/bem-estar. Podemos formalizar essa crítica por apelo à analogia.”

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Além disso, Naconecy compartilha a opinião incisiva de que estes testes são antiéticos e anticientíficos. “Tal constatação já atende os propósitos da Causa Animal. Devo dizer isso com certa prudência, porque não tenho formação em ciência biomédica, mas sei que essa posição já está consolidada no interior da comunidade de cientistas preocupados com o tratamento dos animais na nossa sociedade.”

De fato, está. Este é o caso do Grupo 1R, formado por três acadêmicas. Gabriella Lisboa e Mariana Teixeira, estudantes de Farmácia e Bioquímica na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e Luiza Alves, estudante de Educomunicação na Universidade de São Paulo (USP). O 1R surgiu como um grupo de estudos, no início deste ano, a partir da inquietação de Mariana e Gabriella sobre a naturalidade na forma como os testes eram tratados em sala de aula. Então, convidaram Luiza para agregar conhecimentos. “A ideia era fazer encontros do grupo de estudos, com leituras previamente selecionadas, pessoalmente na UNIFESP. Mas, devido à pandemia, a gente realizou os encontros no primeiro semestre à distância. Por imprevistos, decidimos não manter este formato para o segundo semestre, mas continuamos com as publicações no Instagram. Temos a nossa biblioteca com todos conteúdos que a gente passou no primeiro ciclo, de oito encontros, do grupo de estudos no link do nosso perfil”, afirma Luiza.

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National Cancer Institute/Unsplash

Cientistas avançam em relação aos testes alternativos ao in vivo.

Nas reuniões e no Instagram, o 1R discute abertamente a experimentação e libertação animal. É importante entender as diferenciações entre os organismos humanos e dos demais animais. Gabriella é bolsista no programa de Iniciação Científica da UNIFESP e atua justamente na área de testes alternativos aos in vivo. Sobre os métodos com cobaias, pontua a necessidade de a ciência parar de tentar humanizar ratos, coelhos e outras espécies não-humanas para postergar o avanço em relação às modalidades alternativas. “Um pesquisador dos Estados Unidos da área de métodos alternativos, mais especificamente dos testes in vitro, cita em um artigo uma frase que eu adoro e minha orientadora também, que é: ‘Seres humanos não são ratos de 70kgs’. A gente não pode agir, como estamos agindo dentro da ciência, achando que é. A gente coloca uma confiança extrema em algo que não tem”, justifica Gabriella. 

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Tibor Janosi Mozes/Pixabay

A estudante também menciona a crise atual do Covid-19 causada pela exploração dos animais e como eles são utilizados na busca por uma solução. “Temos esse vírus, que veio de um animal para um ser humano, e o que a gente faz? Estudamos ele em outros animais, que não tem o receptor ECA 2, presente no nosso pulmão, ao qual o vírus se liga. Os ratos não têm esse receptor e tentamos desesperadamente humanizá-los, colocando esse receptor neles, para testar uma vacina. É uma época que nos mostra muito nesse sentido.”

Na  fase de testes pré-clínicos, as vacinas são experimentadas em camundongos. 

Ao serem questionadas sobre um possível barateamento de custos nas produções científicas que utilizam métodos in vivo, as estudantes pontuam que não. Afinal, toda pesquisa neste segmento é inerentemente cara. Fora as despesas ligadas a manter animais em laboratórios. 

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Além disso, Mariana alega que todo plano de manutenção, ou desenvolvimento, de alguma substância/medicamento vem atrelado a um gasto. E se a ciência fizesse um balanceamento e associasse alguns métodos, talvez houvesse menos desperdício de investimento. “Vejo também que a especificação acaba prejudicando nesse sentido. Se tivesse uma integração de métodos, formaria um conjunto alternativo de tal forma que não fosse preciso refazer uma pesquisa. Enfim, haveria menos prejuízos no sentido tecnológico e de saúde”, declara Mariana.

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Que tal saber mais sobre os testes alternativos ao in vivo? Para isso, conversamos com a professora do Departamento de Ciências Farmacêuticas da UNIFESP e orientadora de Gabriella, Dra. Patricia Santos Lopes.

DIREITOS DOS ANIMAIS

Com o avanço no debate proposto pelo movimento Pró-Vida Animal, algumas conquistas gradativas foram alcançadas no campo de direito reservado às demais espécies. No território nacional, por exemplo, em setembro deste ano, foi sancionado o Projeto de Lei 1095/19, proposto pelo deputado federal, Fred Costa. O PL aumenta a pena para quem cometer maus-tratos a cães e gatos. A punição anterior era de três meses a um ano de prisão e multa. Atualmente, com a mudança, o período de reclusão passou para dois a cinco anos e multa.

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Com essa nova Lei, mais um passo foi dado rumo à dignidade animal. Entretanto, ainda assim gerou debate dentro da esfera Pró-Vida Animal, sobre o porquê deste PL não contemplar as demais espécies não-humanas, visto que são exploradas e maltratadas.  

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Robert Jones/Pixabay

Movimentações pelos direitos dos animais geram mudanças nas legislações que os amparam.

Este apontamento também é feito pelo escritor, administrador do perfil/blog Veganagente e ativista vegano, Robson Fernando de Souza. De acordo com ele, a lei é “para inglês ver”, pois, além do mencionado, cria a falsa ilusão de que a exploração e violência contra animais podem ser combatidas através do punitivismo. “O PL retrata um paradigma mais amplo de especismo institucional, de uso dos defensores de animais domésticos como massa de manobra política, de seletividade de quem vai ser preso ou mantido impune perante crimes contra os animais e de negação deliberada de direitos fundamentais para os animais não-humanos.” 

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Assim como Robson, a presidente da ONG Move Institute e uma das idealizadoras da Bancada Vegana, Danielle Simões Albuquerque, acredita que essa nova lei não contemple todos os animais, justamente, porque os atuais representantes da causa animal na política não compreenderem a dimensão das demandas do ativismo vegano. Então, em sua opinião, o ideal seria levar a pleito uma candidatura de quem entendesse as reivindicações do movimento. Essa é, segundo ela, a proposta da Bancada Vegana. 

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A movimentação denomina-se antiespecista, feminista e suprapartidária, isto é, pertence a vários partidos, mas não se subordina a nenhum. Danielle classifica os motivos pelos quais a candidatura proposta é necessária. “O primeiro ponto é que acreditamos que seja necessário a alternância de poder. Hoje encontramos como representantes públicos sempre um ctrl+c, ctrl+v de homens brancos, cis e carnistas. É impossível que uma pessoa carnista tenha entendimento da complexidade da causa animal. Então, temos que ocupar esses espaços e dar voz aos chamados urgentes dos ativistas pelos animais. Além disso, seríamos a chave para a oposição à Bancada Ruralista, que está envenenando nossos alimentos e tem organizado diversos retrocessos em relação à causa animal e ambiental.”

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A candidatura coletiva é exclusivamente feminina e está presente em algumas cidades do país. As propostas da Bancada vão de políticas voltadas à comunidade LGBTQIA+, apoio ao empreendedorismo vegano, até os testes em animais. Inclusive, este tópico contou com o apoio do 1R. Os projetos foram escritos por Danielle e submetidos ao grupo.

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Portanto, seja no ciberespaço, no ativismo de rua, ou dentro da política, as movimentações pró-vida animal lutam e conquistam local de fala. Desta forma, o futuro livre de crueldade, empático e com a almejada libertação animal está cada vez mais próximo.

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Produto experimental apresentado ao Curso de Graduação em Jornalismo, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de bacharela, com orientação da Profa. Dra. Mirian Aparecida Meliani Nunes.

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